sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Nove de setembro

Respiro. Como se alguém fosse notar minha caixa torácica indo e voltando. A verdade é que minha respiração, que já foi peristáltica, agora não é mais; ando fazendo força para me manter vivo. Desde então.
Da última vez que a vi, ela tinha tintura vermelha na ponta dos cabelos. Cheia de mentiras na língua. – Eu ainda te amo –. Ah, faça-me um favor... Fecha a porta e a matraca.
Acendi meu último cigarro. O relógio marcava 27ºC. Eu disse relógio? Odeio o tempo.
Meu tênis gasto nos bicos, de tanto chutar pedrinhas, as mesmas que meu pai sempre pedia para eu ignorar – você só tem esse tênis, não chute estas pedras do chão, moleque! – Ah, sinto falta dele, do hálito de cigarro, de me ensinar a ver a calcinha das meninas embaixo da escada, de dar seus remédios para o coração. Também sinto falta da mãe. Do modo carinhoso como ela me batia quando eu me metia em conversa de adulto. Ela nem sabe, mas hoje eu prefiro conversar com crianças.
O calendário marcava o dia nove de setembro. Há quatro dias eu estava sozinho. Talvez, por volta de 30 anos. Mais precisamente, 32.
Da última vez que eu ofereci um cigarro a ela, recebi um olhar reprovador – ela estava evitando. Me evitando. Há 6 dias. Fomos dormir com a janela entreaberta, com a cortina cor de vinho, estática. Não ventava naquela noite. Havia um furacão nas minhas ideias.
Aquela foi a última vez que acordei. Naquele dia, às 18:45, um táxi buzinou na minha porta, e o motorista veio buscá-la e ajudou a carregar as malas. As malas que eu mesmo ajudei a fazer, segundo ela. Eu nunca tive culpa de porra de nada, mas ela cuspia mágoas; eu mergulhava em cada uma delas, me remexia naquela coisa densa, feito lama, feito areia movediça. Ela, nem ao menos, me dava a mão. Pelo contrário, ficava num canto calada, posando por cima de toda a sua superioridade feminina-psicológica-terapêutica-moderna. Sua mente era um grande livro de autoajuda. – Para de fumar. Por que você não liga pros seus pais? Largou mais um trabalho? Isso é só um jogo de futebol... – Ela era odiável às vezes. Eu a amava completamente. Sabe quando eu percebi isso? Há quatro dias.
Desde então, não durmo. Não ouço Engenheiros do Hawaii. Não levanto a tábua da privada e nem lavo as mãos. Não vejo Two and a Half man. Passei a odiar os clipes da MTV. Não leio a parte de economia do jornal. Nem compro mais jornal. Não tomo mais suco no jantar. Não aponto as estrelas no céu, entre o vão da cortina cor de vinho. Não vou ao cinema. Não escrevo poemas enquanto deveria estar projetando casas. Não canto no chuveiro. Não uso aquele perfume que tem cheiro de chuva. Ah, você nem sabe o quanto tem chovido aqui dentro de mim, o quanto eu tento secar a cada segundo. Ao lado, vejo uma grande inundação, um dilúvio, uma grande tempestade de vida nova. E que porra de vida é essa? – Eu to bem – decorei essa frase. Nunca a usei tanto. Nunca soube de tanta gente se importando comigo, feito moscas por cima dos restos de comida na mesa. Melhor dizendo, dos farelos no chão, pisoteados. – Eu to bem – e por dentro uma retórica parecia querer se externar; tomava um soco na cara e voltava a dormir dentro de mim. Maldita sinceridade, quando, na verdade, eu precisava parecer estar bem.
Ensaiei o sorriso no espelho. O discurso de bem resolvido. Fiz a barba.
Desde então, me tornei um homem de um conto qualquer, contado por qualquer escritora jovem, cheia de ideias. Um homem ator, uma vida de mentira. Uma falsa comédia. Trágica.
Ela tinha tinta vermelha na ponta dos cabelos. Era uma ex revolucionária, que encareteou com o tempo. Já não fumava ou bebia. Já não ria das minhas histórias da época de conselho estudantil. As coisas foram perdendo a cor, e eu corria atrás delas com um pincel enorme. Mas a tinta era preta. Eu estava estragando tudo.
Desde então, não gosto das cores. Saio todos os dias vestindo cáqui ou bege e, não sei bem o motivo, isso faz eu me sentir um pouco mais da multidão. Um camaleão no meio da sujeira, da correria, da massa infértil, dos sinais vermelhos e das buzinas; de toda a falta de amor das ruas. Já não acredito em amor. Não acredito em mim, nem nela. Só tenho acreditado nas mentiras que ensaiei no espelho – Eu to bem – ninguém discordava.
Ando escrevendo cartas e fazendo menos projetos de casas. Endereço-te todas elas, só estou esperando você vir buscá-las na minha gaveta de cabeceira. Todas tem nosso amor descrito. Meu ódio descrito. Meu arrependimento gritando. Meus ensaios decorados. Minha voz te clamando pra voltar. A senha do meu cartão de crédito. O número dos teus sapatos. Tua mexa de cabelo vermelho, desbotada. Tuas pulseiras douradas. Tua paciência que eu desperdicei. Ah, como eu queria saber teu endereço, teu número de celular. Queria saber se você está bem, se tem tomado tuas pílulas de açúcar, se ainda tem medo de andar de metrô. Queria saber se sua voz ainda falha de manhã, se você ainda espirra ao olhar para o sol. Daria tudo para saber se você ainda quer ter filhos. Queria te dizer que eles sempre estiveram nos meus planos. Você não sabe, mas acabo de fumar meu último cigarro e perdi as contas de quantas vezes respirei. Andei contando as respirações, tive um pouco de dificuldade no começo, mas não resolvi parar por isso. Resolvi que vou viver, por mais que isso signifique te ver em cada esquina, te procurar nas curvas de outras mulheres. Te ver comentando sobre economia enquanto lê o jornal. Te ver ligando a TV nos clipes da MTV apenas para zombar deles. De te lembrar rindo de Two and a Half man e de me implorar para irmos ao cinema. De fazer o melhor suco no jantar. De te ajudar a escolher as estrelas mais bonitas. De te ouvir xingar ao ver a tábua da privada abaixada. De te ouvir rindo de mim enquanto eu cantava no chuveiro. Lembrar-te da sua reação ao sentir meu perfume, dizendo sempre que ele te lembrava o cheiro da chuva. Vou catar estas migalhas com o tempo. Vou desatar este nó entre passado e presente. Mas, por que diabos eu só consigo lembrar de mim nas coisas que havia você? Por enquanto o peito vai e volta. Se vai a fumaça da minha última tragada, no meu último cigarro.
É – eu to bem.

2 comentários:

Anônimo disse...

Espetáculo. Repito, espetáculo!

Felipe Castro disse...

Concordo com o outro comentário, um espetáculo de texto maravilhoso! Vc tem muito talento literário, coisa rara, rara até demais. Boa sorte em tudo, adoro ler-te...